segunda-feira, 14 de janeiro de 2008

O Caso do Professor de Mímese

Gustavo Bernardo, além de grande amigo, é escritor, crítico e professor da UERJ. Ele é responsável por um dos grandes momentos do livro que organizei: O que é qualidade em Literatura Infantil e Juvenil - com a palavra o escritor. Reproduzo aqui um de seus textos: "O Caso do Professor de Mímese".


Era uma vez um professor de mímese. Esse professor é um velho camaleão sentado sobre a árvore onde funciona a escola de camuflagem. Ele mostra aos alunos como ficar da cor de uma folha verde, e depois exige que os alunos façam o mesmo. Dois alunos obedecem, mas o terceiro fica roxo. O professor se irrita e mostra painel no qual um camaleão roxo atrai um gavião.




De repente todos escutam um pio lúgubre: é o gavião! O mestre esconde o painel e fica verde; os dois alunos aplicados o imitam. O mau aluno se apavora e tenta acompanhá-los, mas fica amarelo de medo e se destaca da paisagem. Ele olha para baixo da árvore, encontra uma superfície amarela e pula nela para se proteger. Consegue se camuflar, mas primeiro se torna amarelo para depois encontrar superfície daquela cor. Ironicamente, o camaleão relapso cai em cima do teto amarelo de um ônibus escolar, que o leva para a cidade. Quando chega lá o réptil salta na calçada; um pintor o encontra. O bicho tenta se camuflar mas só consegue adquirir uma cor berrante. O pintor, impressionado, o pega na mão e o leva para o ateliê, onde o coloca sobre uma mesa manchada de muitas tintas. O pequeno animal vê um estilete cravado na madeira. Assustado, faz novo esforço para se camuflar, mas fica com a pele azul e branca. O pintor, admirado, começa a pintá-lo. Na cena seguinte o pintor, com o camaleão colorido no ombro, comemora a exposição das suas pinturas, todas com o bicho como tema. Nos quadros o camaleão relapso faz o contrário do que ensinava seu professor: ele se destaca do fundo e mostra-se exuberante.



Em 1961, nascia na Inglaterra Diana Spencer. Com 18 anos, começou a namorar com o herdeiro do trono britânico. Em 1981, o príncipe e a plebéia casaram-se em Londres, em cerimônia acompanhada pelo planeta. No Brasil, milhões viam as imagens e se comoviam às lágrimas. Não vivíamos sob uma monarquia, mas pouco importava: um conto de fadas, com o príncipe e a princesa, era transmitido pela televisão. Charles e Diana tiveram dois filhos. A princesa torna-se uma referência afetiva para o povo inglês. Esbanjando fotogenia e senso de oportunidade, Diana praticava obras de caridade e conversava com o povo. O casamento de conto de fadas, porém, não ia bem. Cresciam os rumores sobre a traição de Charles. No final de 1992, o casal se separa. No longo processo de divórcio, Diana perde o tratamento de Alteza Real e ganha 180 milhões de libras esterlinas. Em 30 de agosto de 1997, voltava de um jantar em Paris com o namorado, o milionário Dodi Al Fayed. O motorista, para fugir da perseguição dos PAPARAZZI, dirige em alta velocidade. O carro se desgoverna: Diana e Dodi perdem a vida. Nova comoção mundial: todas as imagens eram novamente transmitidas pela televisão para o mundo. No Brasil, milhões de pessoas viam as imagens e se comoviam às lágrimas. Não éramos ingleses, mas que importava: tratava-se de uma boa história de amor, traição e morte. Acrescia-lhe ingrediente extra: os vilões da história pareciam ser os próprios homens dos MEDIA, encarnados nos fotógrafos PAPARAZZI. A cobertura televisiva não disfarçava o constrangimento. O Príncipe Charles abandona o protocolo e corre a Paris. A Rainha Elizabeth II, no entanto, que nunca aceitou Diana e sua intimidade com as pessoas do povo, se esconde atrás de comunicados lacônicos. A Rainha-Mãe assume o papel que faltava: o da Madrasta.

A história do camaleão berrante aparece no desenho animado dirigido por Cassidy Curtis, chamado The art of survival. O desenho, com três minutos de duração, foi realizado em 1998. Para sobreviver camaleões se mimetizam com o ambiente e desse modo fingem que não existem. Os camaleões inspiraram parte das teorias vigentes da ficção, segundo as quais a obra deve representar tão bem a realidade que com ela se confunda. Uma natureza-morta, por exemplo, leva o espectador a tentar pegar a maçã para comer. Todavia, uma natureza-morta não o é à toa: o quadro de uma maçã não pode ser uma maçã, trata-se de outra coisa. Como diria René Magritte debaixo de um cachimbo pintado, CECI N'EST PAS UNE PIPE - "isto não é um cachimbo". Lembrava Magritte de Diderot, que antes dele escrevera um conto intitulado: CECI N'EST PAS UN CONTE. No entanto, essa outra coisa - nem maçã nem cachimbo nem conto - é real também. Ela nos oferece uma outra realidade que às vezes faz tremer aquilo que vínhamos chamando de "realidade". O camaleão trêmulo remete a uma suspeita sobre a arte que, por sua vez, remete à suspeita que a arte levanta sobre a realidade mesma. O camaleão sobreviveu fazendo o contrário do que mandava o professor. Desse modo, deixou implícita uma outra teoria da ficção que, para além de reproduzir o real, recria-o. Na literatura, a mímese pode implicar a produção de um "efeito de real", como quando o escritor se preocupa em colocar os personagens dirigindo automóveis em ruas que de fato existem. Mas a mímese também implica a geração de uma espécie de bruma que desrealiza o real e, assim, cria um novo real. Como lembra Luiz Costa Lima: "a MÍMESIS, se ainda cabe insistir, não é imitação porque não se confunde com o que a alimenta" [Costa Lima: 45]. Na concepção de Dirce Riedel, a literatura tem a realidade não por trás, mas diante de si. Por ser doadora de sentido, a imaginação literária transforma um real preexistente no real pensado que só pode existir, ou acontecer, através dela [Riedel: 78]. No mundo "real", consideramos verdadeiro que Napoleão Bonaparte tenha sido morto em Santa Helena no dia 5 de maio de 1821. Contudo, historiadores mantêm a mente aberta para admitir nova data para a morte de Napoleão, caso novos documentos provem o contrário do que se sabia. O mundo criado pela mímese, no entanto, é diferente. No mundo da ficção, Sherlock Holmes é solteiro e não pode não ser, assim como Super-Homem é Clark Kent e não pode não ser. Os exemplos são de Umberto Eco. Para ele os textos ficcionais, à diferença do mundo e ainda quando ambíguos, explicitam uma margem clara de certeza [Eco: 13], conduzindo-nos a paradoxo interessante: a ficção desrealiza o real para criar um novo real mais seguro, portanto "mais real", do que aquele que se encontrava no ponto de partida. O real ele mesmo treme, como o camaleão tremia de medo.


A fábula se apresenta com a força de um fato, mas alguns fatos têm força de fábula. A história de Diana Spencer é real, mas o mundo a acompanha como se fosse ficção, vivendo-a com a intensidade catártica de uma história inventada. A realidade mesma é estranha. Diana morre em 1997. David Lodge escreve no ano seguinte uma peça de teatro que alude à sua morte, transformando-a em 1999 na novela Home truths, traduzida no Brasil como Verdades secretas. A narrativa fala da difícil relação entre a fábula e o fato. Fanny Tarrant, personagem de Lodge, é uma jornalista feroz. Ela entrevista o roteirista Samuel Sharp, expondo a sua vaidade e o levando ao ridículo. Sharp, ofendido, recorre ao amigo de infância, o escritor Adrian Ludlow. Adrian organiza antologias e vive dos direitos de romances antigos. Por vinte anos, guarda um segredo: parou de escrever porque não ganhou certo prêmio literário. Como sabe que Fanny também deseja entrevistar Adrian, Samuel pede ao amigo que prepare uma armadilha para Miss Tarrant: grave escondido a conversa para escrever depois um artigo devastador que humilhe a jornalista. Na entrevista, no entanto, Fanny e Adrian quase têm um caso. São interrompidos por Eleanor, mulher do escritor, que, ofendida, acaba revelando o segredo do marido. Logo se arrepende e lhe pede que não publique, mas Fanny diz: você sabia o que eu faço para viver. Desalentada, Eleanor concorda: YES, YOU DESTROY PEOPLE'S LIVES - "sim, você destrói a vida das pessoas", insinuando-se na casa delas, seduzindo-as com observações elogiosas e traindo-as a seguir [Lodge: 91]. O final mistura ficção e realidade. A jornalista está viajando de férias para a Turquia, quando escuta no rádio a notícia da morte de Diana. Ela fica ao mesmo tempo comovida e desesperada: naquele dia saía no jornal tanto a sua entrevista com Adrian quanto um artigo sarcástico, também seu, sobre Diana. Se na entrevista ela revela o segredo de Adrian, no artigo ridiculariza a ambigüidade da Princesa: SHE WANTS TO HAVE IT BOTH WAYS - "ela quer ter os dois mundos", acalentando bebês famintos sob os joelhos e divertindo-se no iate de Dodi [Lodge: 129]. Fanny abandona a viagem e tenta voltar. Perde-se no caminho e acaba parando na casa de Adrian, onde se encontram também Eleanor e Samuel. Eles não sabiam ainda da morte de Diana. A jornalista diz a Adrian que não se preocupe, naquele dia ninguém vai ler a entrevista, mas todos lerão seu artigo desastrado. Fanny sai da casa. O trio de amigos está estupefato. Adrian comenta: IT'S SO INCREDIBLY POETIC, ISN'T IT? LIKE A GREEK TRAGEDY. YOU DON'T EXPECT LIFE TO IMITATE ART SO CLOSELY [Lodge: 131]. Em português: "Isso tudo é tão inacreditavelmente poético, não é? Como se fosse uma tragédia grega. Você não espera que a vida imite a arte tão de perto". Diana, perseguida pelos PAPARAZZI, as Fúrias contemporâneas, morre com seu novo amante, deixando simétricos o amor e a morte. Eleanor fica assustada com Adrian: MUST YOU TURN EVERYTHING IN LITERATURE? - "você precisa transformar tudo em literatura?" [Lodge: 132]. Mas Eleanor é uma personagem literária que pergunta ao marido, um escritor ele mesmo outro personagem literário, se é preciso transformar tudo em literatura: a ficção engole a ficção, uroboricamente. Os personagens passam a falar da catarse que a nação estaria vivendo naquele momento. Sentam-se juntos para ver a cobertura da televisão, esquecidos das discussões anteriores. Na tela, o locutor também chora. O jornal com a entrevista chega, mas não tem mais importância.


A história de Diana, combinada ao romance de David Lodge, nos leva de volta ao fracasso do professor de mímese, mostrando que uma teoria da ficção, ainda que sempre incompleta, talvez seja necessária não somente para se lidar melhor com os textos ficcionais, mas também para se lidar melhor com aquilo que chamamos de realidade.

Referências
COSTA LIMA, Luiz. Mímesis e modernidade: formas das sombras. São Paulo: Paz e Terra, 2003. RIEDEL, Dirce Côrtes. Metáfora, o espelho de Machado de Assis. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1974. ECO, Umberto. Sobre a literatura. Tradução de Eliana Aguiar. Rio de Janeiro: Record, 2003. REUTER, Yves. A análise da narrativa. Tradução de Mário Pontes. Rio de Janeiro: Difel, 2002. LODGE, David. Home truths. London : Penguin Books, 1999.