Meu primeiro sentimento diante da notícia de terremoto no Chile foi de espanto, profunda tristeza e déjà-vu. No dia anterior à partida de meu editor e amigo Sérgio Alves (Ed. Larousse), lamentei com ele meu total esquecimento do Congresso Ibero-americano de Literatura Infantil, de que pretendia participar. Não é comum que eu me desligue tanto das coisas assim, por isso fiquei bastante chateada. Como não havia mais nada que pudesse ser feito, combinamos a Feira de Bologna, agora em março. Assim que soube da notícia, tentei falar com ele e com outros amigos que foram para o evento. Não consegui. Recebi notícias deles de diversas fontes. Estão bem, dentro das possibilidades. A Ângela Lago está doente, segundo o Peter O.Sagae, mas medicada. A comunicação é quase impossível.
Veio forte em minha mente o desespero que passei na primeira vez que fui ao Japão, em 1982. Tinha ido participar de um congresso de jovens e, na véspera do retorno ao Brasil, houve um terremoto. Nunca em minha vida havia sentido tão completa impotência diante do desconhecido. Estava sozinha, longe de minha família e do meu país, no 35. andar de um hotel em Tóquio, quando começou o terremoto. Arrumava minhas malas, pois retornaria ao Brasil no outro dia pela manhã, quando o prédio começou a sacudir e a estalar e os objetos a sair do lugar e cair. Entrei em pânico e saí descalça para o corredor, sem saber o que fazer, enquanto luzes vermelhas se acendiam. Num inglês/japonês, que mal compreendia, avisavam que não entrássemos em pânico que o hotel estava preparado para essas situações. Ele podia até estar, mas eu não. Até hoje não lembro como fui parar no térreo ao lado de pessoas enroladas em toalhas, outras de pijamas, yukatas etc. A coisa que mais me impressionou foi o barulho, que parecia vir do centro da terra. Outros tremores menores aconteceram após algum tempo. Fui até o bar do hotel e pedi saquê. Bebi até criar coragem de voltar para o quarto. Não houve vítimas no Japão, apenas prejuízos materiais inevitáveis. No outro dia, voltei para o Brasil. Lembro o pensamento sombrio que fiz quando sobrevoamos a Amazônia: já posso morrer, estou em casa.
Penso que uma das grandes coisas que o sofrimento nos dá é a possibilidade de potencializar nosso senso de humanidade, qualificando-nos como pessoas. Olhando desse viés, é que consigo abrir espaço para a gratidão. Estou aqui aguardando a chegada de meus amigos, que, tenho certeza, virão maiores do que quando partiram.
Reproduzo o depoimento que a Ana Maria deu para a Folha de São Paulo sobre os momentos que passaram e ainda passam no Chile.
ANA MARIA MACHADO
ESPECIAL PARA A FOLHA, EM SANTIAGO
Espanto e medo, as duas primeiras sensações. Ainda dormindo, sinto a cama balançar, deslizar e trepidar enquanto algo me sacudia como num pesadelo. Ao abrir os olhos, no escuro, sem entender o que estava acontecendo, de repente me ocorre que, se tudo esta tremendo assim, deve ser um terremoto. Entrava uma fresta de luz por baixo da porta, fui até lá e abri.
A essa altura, tudo já sacudia muito forte. Barulho de vidros quebrados e coisas caindo, estalos dentro das paredes. Do outro lado do corredor, Jorge Eslava, escritor peruano e companheiro do mesmo congresso, segura-se no umbral de sua porta, me chama pelo nome e me diz: "Este é dos fortes..."
Pergunto-lhe: "Que faço?" "Isso mesmo que estas fazendo. Fica aí. Assim que parar, descemos. Teu sapato está por perto? Se estiver, pega antes de descer para não se cortar se tiver vidro quebrado no chão."
Quando o tremor diminui, sigo as instruções e ainda pego um casaquinho que estava a mão. Pelas escadas vamos encontrando outros hóspedes descendo. Reboco caído pelo chão, teto de gesso despencado, papel de parede solto, quadros e abajures derrubados. No saguão do hotel, funcionários nos instruem a sair e esperar lá fora. Longe do prédio para não sermos atingidos por algo que despenque. Procuro os amigos no meio da pequena multidão.
Vejo Marisa enrolada no lençol. Ambas assustadas, nos abraçamos. Os outros vão chegando, igualmente com medo e querendo abraços. Beth, Lygia, Dolores, Yolanda, Sylvia, Daniel, Antonio, Sérgio, Tania, Susana, Angela. Conferimo-nos mutuamente. Muita confusão. A rua toda escura, só o gerador do hotel com suas luzes de emergência. Carros saem com faróis acesos dos estacionamentos subterrâneos, todos se afastam para deixar que escapem para longe. Pelo asfalto, veículos passam muito rápido.
Parece que todos os cachorros do mundo latem ao mesmo tempo. Sirenes de bombeiros, ambulâncias. Barulho de batidas de automóveis. Mais outra em seguida. E mais outra. Claro: todos fogem e os sinais não funcionam.
Ficamos ali em pé, em roupa de dormir. Um ou outro chegou a se vestir completamente antes de descer. Os funcionários do hotel servem água. A equipe de acolhimento do congresso nos acalma, conversa, dá instruções. Entre elas, daí a umas duas horas, nos dizem para entrar. Insistem. Aos que estão com medo, explicam: estão começando os assaltos. Vemos os bandos rondando. Entramos no saguão onde vamos ficar o dia inteiro, prontos para sair cada vez que começar novo tremor. São muitos, mas felizmente todos mais fracos.
Aos poucos, cada um enfrenta o medo, volta ao quarto, pega algumas coisas, muda a roupa, faz seu kit de sobrevivência que passa a carregar pra todo lado desde então -documentos, carteira, uma muda de roupa básica, telefones celulares, óculos.
Só o que se quer então é falar com a família, dar notícias. A comunicação é muito precária. Acesso intermitente a televisão. Telefones, internet e celulares não funcionam. Quem tem blackberry compartilha com todos, quem consegue falar com o Brasil pede para dar recado aos parentes dos outros.
Durante todo esse primeiro dia é assim. Estreita-se uma rede de solidariedade e sentido de equipe.
Eu deveria ir para o aeroporto duas horas depois, voltando para casa. Mas logo se constata que vai ser impossível que esteja aberto. Até agora não se sabe ao certo quando abrirá. Tudo é incerto e precário. Mas lembro de meu pai, quando eu era criança: eu devia era rezar para o meu anjo da guarda e agradecer. Estou bem, entre amigos, não aconteceu nada a nenhum de nós. Triste consolo, em meio a um país desolado, atingido pela dor.
ANA MARIA MACHADO
ESPECIAL PARA A FOLHA, EM SANTIAGO
Espanto e medo, as duas primeiras sensações. Ainda dormindo, sinto a cama balançar, deslizar e trepidar enquanto algo me sacudia como num pesadelo. Ao abrir os olhos, no escuro, sem entender o que estava acontecendo, de repente me ocorre que, se tudo esta tremendo assim, deve ser um terremoto. Entrava uma fresta de luz por baixo da porta, fui até lá e abri.
A essa altura, tudo já sacudia muito forte. Barulho de vidros quebrados e coisas caindo, estalos dentro das paredes. Do outro lado do corredor, Jorge Eslava, escritor peruano e companheiro do mesmo congresso, segura-se no umbral de sua porta, me chama pelo nome e me diz: "Este é dos fortes..."
Pergunto-lhe: "Que faço?" "Isso mesmo que estas fazendo. Fica aí. Assim que parar, descemos. Teu sapato está por perto? Se estiver, pega antes de descer para não se cortar se tiver vidro quebrado no chão."
Quando o tremor diminui, sigo as instruções e ainda pego um casaquinho que estava a mão. Pelas escadas vamos encontrando outros hóspedes descendo. Reboco caído pelo chão, teto de gesso despencado, papel de parede solto, quadros e abajures derrubados. No saguão do hotel, funcionários nos instruem a sair e esperar lá fora. Longe do prédio para não sermos atingidos por algo que despenque. Procuro os amigos no meio da pequena multidão.
Vejo Marisa enrolada no lençol. Ambas assustadas, nos abraçamos. Os outros vão chegando, igualmente com medo e querendo abraços. Beth, Lygia, Dolores, Yolanda, Sylvia, Daniel, Antonio, Sérgio, Tania, Susana, Angela. Conferimo-nos mutuamente. Muita confusão. A rua toda escura, só o gerador do hotel com suas luzes de emergência. Carros saem com faróis acesos dos estacionamentos subterrâneos, todos se afastam para deixar que escapem para longe. Pelo asfalto, veículos passam muito rápido.
Parece que todos os cachorros do mundo latem ao mesmo tempo. Sirenes de bombeiros, ambulâncias. Barulho de batidas de automóveis. Mais outra em seguida. E mais outra. Claro: todos fogem e os sinais não funcionam.
Ficamos ali em pé, em roupa de dormir. Um ou outro chegou a se vestir completamente antes de descer. Os funcionários do hotel servem água. A equipe de acolhimento do congresso nos acalma, conversa, dá instruções. Entre elas, daí a umas duas horas, nos dizem para entrar. Insistem. Aos que estão com medo, explicam: estão começando os assaltos. Vemos os bandos rondando. Entramos no saguão onde vamos ficar o dia inteiro, prontos para sair cada vez que começar novo tremor. São muitos, mas felizmente todos mais fracos.
Aos poucos, cada um enfrenta o medo, volta ao quarto, pega algumas coisas, muda a roupa, faz seu kit de sobrevivência que passa a carregar pra todo lado desde então -documentos, carteira, uma muda de roupa básica, telefones celulares, óculos.
Só o que se quer então é falar com a família, dar notícias. A comunicação é muito precária. Acesso intermitente a televisão. Telefones, internet e celulares não funcionam. Quem tem blackberry compartilha com todos, quem consegue falar com o Brasil pede para dar recado aos parentes dos outros.
Durante todo esse primeiro dia é assim. Estreita-se uma rede de solidariedade e sentido de equipe.
Eu deveria ir para o aeroporto duas horas depois, voltando para casa. Mas logo se constata que vai ser impossível que esteja aberto. Até agora não se sabe ao certo quando abrirá. Tudo é incerto e precário. Mas lembro de meu pai, quando eu era criança: eu devia era rezar para o meu anjo da guarda e agradecer. Estou bem, entre amigos, não aconteceu nada a nenhum de nós. Triste consolo, em meio a um país desolado, atingido pela dor.