Um dos traços distintivos das reflexões do Helênio é que ele, ao contrário de muitos especialistas que apenas apontam problemas no ensino da língua, procura sempre buscar soluções. Posto aqui um de seus artigos, que traz uma visão bastante lúcida sobre "como e quando interferir no comportamento lingüístico do aluno".
1. Introdução
Há uma gama de atitudes a respeito da interferência na linguagem do aluno, que vão desde o normativismo extremo até o laissez-faire radical. Ao primeiro equivale o já desgastado prescritivismo tradicional, fundado na crença em uma língua homogênea e monolítica, segundo a qual o que não é português formal culto não é português. A oposição a essa atitude se vem exercendo há pelo menos sete décadas, desde a histórica Semana de Arte Moderna de 1922.
O outro extremo (atitude laissez-faire) baseia-se no mito romântico da espontaneidade da linguagem, segundo o qual não se deveria interferir no comportamento lingüístico do estudante, nem lhe ensinando técnicas narrativas, argumentativas, poéticas etc., nem corrigindo sua linguagem. Boissinot (1994:11) critica a "ideologia neo-romântica da espontaneidade do sujeito falante, da liberação da palavra, incompatível com uma abordagem técnica e metódica da arte do discurso" ["... une idéologie néo-romantique de la spontaneité du sujet parlant, de la libération de la parole, incompatible avec une approche technique de l’art du discours"].
Os dois extremos, como sempre, estão equidistantes da verdade. O que se pretende aqui é precisamente operacionalizar o meio-termo entre eles, oferecendo ao professor critérios que lhe permitam decidir quando deve e quando não deve corrigir a linguagem de seus alunos, definindo assim o espaço que cabe à norma gramatical dentro de um ensino que leve a um uso lingüístico atual e eficiente.
Outro esclarecimento: Este trabalho NÃO é behavorista, apesar de operar com conceitos como comportamento, hábito e similares. A esse respeito, nossa visão se aproxima da de Bronckart (1999:41), segundo a qual é "a ação como tal, no conjunto de seus componentes mentais e comportamentais, que se constitui como o objeto da psicologia".
Não se pode negar que no ensino de línguas os automatismos verbo-motores desempenham um papel importante. O que ocorre é que, numa pedagogia behaviorista, a aprendizagem lingüística se limitaria à aquisição de tais automatismos e hoje sabemos que nem tudo no ensino – seja da língua materna do aluno, seja de línguas estrangeiras – se restringe ao binômio estímulo – resposta. Muito da aprendizagem dos conceitos necessários à metalinguagem utilizada no ensino da língua, por exemplo, consiste na conscientização daquele saber lingüístico inato (portanto inconsciente) de que fala Chomsky, através de uma metodologia obviamente "mentalista". Ao comportamento o que é do comportamento, à mente o que é da mente.
2. Falado e escrito / formal e informal
Há uma gama de atitudes a respeito da interferência na linguagem do aluno, que vão desde o normativismo extremo até o laissez-faire radical. Ao primeiro equivale o já desgastado prescritivismo tradicional, fundado na crença em uma língua homogênea e monolítica, segundo a qual o que não é português formal culto não é português. A oposição a essa atitude se vem exercendo há pelo menos sete décadas, desde a histórica Semana de Arte Moderna de 1922.
O outro extremo (atitude laissez-faire) baseia-se no mito romântico da espontaneidade da linguagem, segundo o qual não se deveria interferir no comportamento lingüístico do estudante, nem lhe ensinando técnicas narrativas, argumentativas, poéticas etc., nem corrigindo sua linguagem. Boissinot (1994:11) critica a "ideologia neo-romântica da espontaneidade do sujeito falante, da liberação da palavra, incompatível com uma abordagem técnica e metódica da arte do discurso" ["... une idéologie néo-romantique de la spontaneité du sujet parlant, de la libération de la parole, incompatible avec une approche technique de l’art du discours"].
Os dois extremos, como sempre, estão equidistantes da verdade. O que se pretende aqui é precisamente operacionalizar o meio-termo entre eles, oferecendo ao professor critérios que lhe permitam decidir quando deve e quando não deve corrigir a linguagem de seus alunos, definindo assim o espaço que cabe à norma gramatical dentro de um ensino que leve a um uso lingüístico atual e eficiente.
Outro esclarecimento: Este trabalho NÃO é behavorista, apesar de operar com conceitos como comportamento, hábito e similares. A esse respeito, nossa visão se aproxima da de Bronckart (1999:41), segundo a qual é "a ação como tal, no conjunto de seus componentes mentais e comportamentais, que se constitui como o objeto da psicologia".
Não se pode negar que no ensino de línguas os automatismos verbo-motores desempenham um papel importante. O que ocorre é que, numa pedagogia behaviorista, a aprendizagem lingüística se limitaria à aquisição de tais automatismos e hoje sabemos que nem tudo no ensino – seja da língua materna do aluno, seja de línguas estrangeiras – se restringe ao binômio estímulo – resposta. Muito da aprendizagem dos conceitos necessários à metalinguagem utilizada no ensino da língua, por exemplo, consiste na conscientização daquele saber lingüístico inato (portanto inconsciente) de que fala Chomsky, através de uma metodologia obviamente "mentalista". Ao comportamento o que é do comportamento, à mente o que é da mente.
2. Falado e escrito / formal e informal
O professor de Português se vê com freqüência diante do seguinte dilema: levar o aluno a empregar uma linguagem "correta", mas excêntrica, ou aconselhá-lo a falar como a comunidade espera, mas com uma espécie de "sentimento de culpa" por haver "traído" a gramática?
Para resolver esse impasse se poderia, à primeira vista, propor a obediência à norma na escrita e sua flexibilização na fala, o que, no entanto, seria ainda inexato. Na verdade, a dicotomia correta é formal versus informal e não escrito versus falado. Em circunstâncias formais, a comunidade espera que se empregue, seja escrevendo ou falando, a língua-padrão (cf. ing. standard language), entendida aqui como a variedade formal culta – e até certo ponto supra-regional – do idioma, que corresponde, em parte ao menos, à língua descrita pela gramática escolar. Em situações informais, ao contrário, seja na fala ou na escrita, a expectativa da comunidade é que se empreguem as variedades informais da língua. Em outras palavras: o binômio decisivo para a obediência à norma gramatical é o referente ao grau de formalidade da comunicação e não à natureza oral ou escrita desta.
Não se conclua daí, entretanto, que não haja correlação entre modalidade escrita e formalidade, por um lado, e entre informalidade e fala, por outro. De fato, a comunicação escrita tende a ser mais formal do que a falada.
Na verdade, a oposição formal/informal é uma simplificação didática. Há no mínimo quatro graus de formalidade (registros) no português do Brasil: o ultraformal, o formal, o semiformal e o informal, de que são exemplos, respectivamente (no uso oral da língua), o discurso solene de um paraninfo numa cerimônia de formatura, uma conferência, uma conversa entre cientistas que se conhecem há muito tempo sobre assunto de sua especialidade (que não ficará totalmente formal, pela intimidade existente entre os interlocutores, nem totalmente informal, pela natureza "intelectual" do assunto tratado) e a conversação diária. Exemplos na modalidade escrita: do ultraformal – certos textos jurídicos e um ou outro texto burocrático; do formal – um verbete de enciclopédia; do semiformal – uma crônica esportiva (na mídia immpressa); do informal – um bilhete.
Ainda numa visão um tanto esquemática, mas didaticamente necessária, diríamos que a necessidade de obediência à norma gramatical existe no registro ultraformal e no formal, não existindo nos dois últimos.
Além do grau de formalidade, outros fatores interferem na escolha do tipo de linguagem adequado a cada situação, a saber, o status dos interlocutores, o local, o assunto, o gênero textual (o que é virtude num gênero pode ser defeito em outro), a modalidade escrita ou oral e a natureza monolocutiva ou interlocutiva, privada ou pública etc. da comunicação. O princípio geral, porém, é sempre o mesmo: o da adequação.
3. Situação do Brasil
Nossa condição de ex-colônia contribui para que a diferença entre formal e informal seja maior no português do Brasil que no de Portugal, como é maior em Marselha que em Paris, no Texas do que em Oxford, em Buenos Aires do que em Madri e assim por diante, ou seja, para quem não vive na região cujo dialeto serviu de base à variedade padrão do idioma a distância entre formal e informal é realmente maior. Não chegamos ao extremo da diglossia no Brasil, mas temos de dominar variedades lingüísticas estruturalmente mais diferenciadas que as utilizadas por um falante português. Não há dúvida, o desafio dos professores de Português no Brasil é maior que o de seus pares portugueses. Esse "privilégio", por assim dizer, de quem vive na área geográfica berço da língua padrão é um fato, que não cabe lamentar nem exaltar, mas "administrar", a não ser que se optasse por uma política lingüística xenófoba, como a dos antigos adeptos da tese da "língua brasileira".
4. A "informalização" do registro formal na atualidade
A mídia vem há várias décadas "informalizando", até certo ponto, o português do Brasil. Graças à televisão, ao rádio e à mídia escrita, o registro formal de hoje é talvez o semiformal de outros tempos e o ultraformal caminha a passos largos para o desuso. O Manual de estilo da Editora Abril, por exemplo, contra-indica a mesóclise (p. 55), cujo uso se limita possivelmente, nos dias de hoje, à linguagem jurídica e a textos acadêmicos de algumas áreas.
Cabe, pois, ao professor ter sensibilidade para perceber – dentre as formas legitimadas pela gramática escolar – quais estão caindo em desuso e priorizar as que efetivamente ocorrem no português formal real do Brasil. Por exemplo: embora a gramática normativa admita, facultativamente, as formas João o comunicou a nós e João no-lo comunicou, o professor pode habilmente "silenciar" a respeito da segunda, menos usual no Brasil. Num ensino centrado em textos atuais, essa ênfase ao padrão real se torna automática, já que em tais textos são raras ou simplesmente inexistem as opções mais artificiais.
5. O espaço concedido ao registro formal e ao informal no ensino da língua
Nossa proposta tem em comum com o ensino tradicional a ênfase à língua-padrão. Difere dele, no entanto, na medida em que "reabilita" as variedades não padrão da língua. Difere também – é bom que se diga – das propostas "modernosas", como a subjacente a um livro didático de Português que nos chegou às mãos há algum tempo, cujos textos se encontravam todos no registro informal, num evidente desequilíbrio entre corpus e objetivos.
A utilização de textos formais tem como objetivo – entre outros – a aquisição pelo estudante das construções e do vocabulário típicos do registro formal e o uso de textos informais tem como propósito sensibilizá-lo para a "respeitabilidade" da linguagem coloquial, que o aluno, aliás, já domina antes de ingressar na escola. Como essa sensibilização não requer contacto com um corpus muito extenso, ao contrário da aquisição de léxico e estruturas da língua-padrão, que exige o convívio com uma quantidade bem maior de textos, recomenda-se mais ênfase ao português formal do que ao coloquial, pelo menos nas séries mais adiantadas, refletindo-se essa ênfase na proporção do número dos textos formais para uso em aula, em comparação com o dos informais.
6. Tipologia dos erros de comunicação
Em qualquer país, o aprendizado da variedade formal culta do idioma se dá gradualmente e na fase de aquisição dessa variedade o aluno comete erros. Num país como o Brasil existe ainda a agravante de que a distância entre formal e informal é, como vimos, bastante acentuada. Se o erro de linguagem existe, é pedagogicamente desejável que seja corrigido, isto é, que se tome um conjunto de providências didáticas destinadas a levar o aluno a adquirir as habilidades cuja não aquisição o leva a errar, o que não se deve confundir com uma atitude prescritiva grosseira. Tal "correção" pode consistir inclusive em atividades que desenvolvam prazerosamente o hábito da leitura, pondo o aluno em contacto com a língua-padrão.
Para operacionalizar essa correção (no sentido amplo), faz-se necessário repensar o conceito de erro de linguagem. Proporíamos que se passe a entender como tal não necessariamente o que a gramática escolar condena, é claro, mas o que compromete a eficiência da comunicação. Denominaremos corretos, portanto, os hábitos lingüísticos que o professor deve levar o aluno a cultivar e incorretos os que devem ser "corrigidos". Termos como erro e seus afins – correto, incorreto, incorreção etc. – embora portadores de conotações preconceituosas culturalmente arraigadas, podem tornar-se bastante operacionais, desde que os redefinamos. Do nosso esforço de redefinição, ou seja, de uma busca de critérios consistentes e pedagogicamente úteis para distinguir o correto do incorreto (neste novo sentido), acabou resultando uma tipologia dos erros de comunicação, que passamos a expor, a partir do comentário dos seguintes casos concretos:
(1) emprego do verbo ir, na fala informal, seguido de complemento introduzido por em: fui em São Paulo(2) idem, num bilhete dirigido ao marido pela esposa(3) idem, numa carta comercial(4) emprego de ênclise no início da frase (exemplo: parece-me que...), entre interlocutores de idêntico status, que se conhecem há muito tempo, numa situação de lazer(5) erro ortográfico num exercício de redação(6) uso de construções como "Pedro me entregou-o" numa redação escolar
(1) e (2) – ou seja, ir em na conversação diária e num bilhete – embora incorretos para a tradição escolar, estão corretos no sentido dado aqui ao termo, já que funcionam bem na comunicação, preenchendo os requisitos da inteligibilidade e da adequação.
Com relação a (3) – ir em numa carta comercial – proporíamos que se fizesse o mesmo que o professor tradicional fazia, ou seja, que se "corrigisse" a regência do verbo, já que o registro adequado para o gênero carta comercial é o formal.
Não pretendemos discutir como corrigir salvando a face do aluno. Limitamo-nos a afirmar que é preciso capacitá-lo a adequar a linguagem ao gênero do texto. Embora reconheçamos que é importante fazer isso sem ferir a suscetibilidade do estudante, não pretendemos aqui, por não ser esse o objetivo do trabalho, sugerir estratégias para a preservação da auto-estima do aluno.
Numa situação como (4) – emprego de pronome enclítico (parece-me) numa situação informal – nossa proposta é de certo modo mais exigente que a tradicional, uma vez que "corrige" o que ela aceitaria. De acordo com a tradição escolar, não há nada de censurável no comportamento lingüístico desse falante. Na verdade, porém, ele cometeu uma inadequação, empregando linguagem formal numa situação informal. É o chamado pedantismo.
A julgar pelos exemplos examinados até aqui, correto pareceria sinônimo de "adequado", só existindo erro de linguagem em termos relativos, ou seja, todo erro consistiria no emprego do registro informal em situações formais ou vice-versa. A existência de palavras e frases inaceitáveis independentemente da situação comunicativa, por conseguinte, pareceria, à primeira vista, impossível.
A questão, no entanto, não é tão simples. Não se trata meramente de substituir a dicotomia tradicional correto / incorreto por formal / informal ou o conceito de correção pelo de adequação. Há formas incorretas em si mesmas, ou sejam, erros em termos absolutos. É o caso de (5), por exemplo: erro ortográfico. A infração às regras da ortografia é sempre um erro, qualquer que seja o gênero textual em que ocorra. Também neste ponto coincide a posição tradicional com a do ensino que estamos propondo.
Esse tratamento especial concedido à ortografia deve-se aos seguintes fatos: (1.o) o sistema ortográfico é o único aspecto do idioma inteiramente adquirido na escola, o que o torna mais artificial e rígido que os demais subsistemas da língua; (2. o) a ortografia é matéria de lei no Brasil; (3. o) ela diz respeito exclusivamente à comunicação escrita. Esse conjunto de atributos a impede, mesmo numa proposta flexível de ensino, de ser tratada com a mesma flexibilidade que os demais subsistemas. No aprendizado da ortografia não faz sentido, pois, o binômio formal/informal. Se determinada palavra se grafa com "ch", não é por estar empregada num texto informal que se passará a escrever com "x". A grafia tem de ser a mesma, seja num bilhete ou num relatório técnico.
A inaceitabilidade de uma forma lingüística pode, portanto, ter caráter relativo (quando essa forma, embora empregada inadequadamente, não for intrinsecamente incorreta, sendo, portanto, aceitável em outras situações) ou ser de natureza absoluta (erro propriamente dito), quando a palavra ou seqüência de palavras empregada é em si incorreta, independentemente da situação em que tenha sido usada.
O erro em termos relativos (ou inadequação) é, pois, o emprego, em situações inadequadas, de uma forma lingüística que, na proposta aqui veiculada, nada tem de errôneo em si mesma, embora possa, como no exemplo (3), ser tratada como incorreta pela tradição escolar.
Outro esclarecimento: na denominação erro em termos absolutos ou abreviadamente erro absoluto, o adjetivo absoluto nada tem a ver com a idéia de "erro grave". Os termos absoluto e relativo têm, na terminologia que estamos sugerindo, o mesmo sentido com que os matemáticos os empregam quando falam em valor absoluto e valor relativo de um algarismo.
Quanto a (6) – "Pedro me entregou-o" – é um exemplo do que denominamos erro absoluto não ortográfico. Nesse caso o professor deve corrigir a linguagem do estudante, independentemente da situação, embora não se trate de problema ortográfico. O equivalente informal de (6) seria Pedro entregou ele pra mim (ou Pedro me entregou ele) e o formal seria, no português do Brasil, Pedro o entregou a mim (Pedro mo entregou é uma construção lusitana). Logo a frase do aluno não é formal nem informal, e sim incorreta. A opção pelo pronome oblíquo o e ao mesmo tempo pela ênclise, ambos típicos do registro formal, é, por si só, um índice da intenção do falante de empregar esse registro.
Quando um usuário de uma língua, que não domina sua variedade formal, emprega, na tentativa de exprimir-se nessa variedade, formas lingüísticas que não são formais nem informais, mas tentativas malsucedidas de usar o registro formal, tem-se o que denominamos erro absoluto não ortográfico.
O erro de linguagem, por conseguinte, pode ser:
(a) RELATIVO E DECORRENTE DO "REBAIXAMENTO" INADEQUADO DO REGISTRO – exemplo (3);
(b) RELATIVO E DECORRENTE DA "ELEVAÇÃO" INADEQUADA DO REGISTRO – exemplo (4);
(c) ABSOLUTO ORTOGRÁFICO – exemplo (5);
(d) ABSOLUTO NÃO ORTOGRÁFICO – exemplo (6).
Uchoa (1996) propõe uma classificação um pouco diferente, mas também muito útil. Segundo ele a incorreção pode decorrer: (a) de falhas na capacidade para usar a linguagem de modo geral (inconsistências, contradições, fragilidade argumentativa etc.); (b) de falta de domínio da língua propriamente dita (português, japonês, espanhol etc.) – exemplo: ênclise com os futuros do indicativo em português; (c) da inadequação ao contexto. As duas primeiras categorias equivalem ao nosso erro absoluto e a última, ao relativo.
7. Erros textuais
Nossa classificação não se limita ao nível frástico, sendo aplicável também ao nível textual, como se pode ver pelos exemplos de erros (relativos e absolutos) de natureza textual que passamos a examinar:
(7) erro relativo de coesão textual (rebaixamento do registro) – A repetição pura e simples do sintagma nominal, típica da linguagem informal e muito freqüente na fala, quando empregada em gêneros textuais que exigem mecanismos de coesão mais complexos, pode classificar-se como erro relativo de coesão textual: inadequação do mecanismo coesivo ao gênero textual, à situação comunicativa etc.
(8) erro absoluto de coesão textual – Um exemplo de erro absoluto de coesão pode ser a infração às regras responsáveis pela relação do pronome com seu referente textual. Um caso muito comum desse tipo de infração é a NÃO realização da concordância transfrástica, como neste exemplo, ocorrido numa redação escolar:
"A partir disso, essas pessoas passam a ter uma dívida de gratidão com esse ‘amigo’. Ele o auxiliou numa hora em que o Estado se manteve inerte." Como essas pessoas é feminino plural, o pronome deveria ser as.
Outras vezes o aluno, diante da repetição de um sintagma com referentes distintos, substitui a segunda ocorrência por um pronome, o que constitui também um erro (absoluto) de coesão textual, já que um pronome só pode substituir a segunda ocorrência de um constituinte textual repetido se o referente for o mesmo. É o caso, por exemplo, do fragmento abaixo:
"Nada como um dia após o outro. Um dia chega em que a sorte nos sorri e aí é preciso saber aproveitá-lo."
Se substituirmos, nesse exemplo, a segunda ocorrência do sintagma repetido por um pronome, teremos "Nada como um dia após o outro. Ele chega em que a sorte nos sorri e aí é preciso saber aproveitá-lo" – o que não faz sentido, porque o referente do primeiro sintagma um dia é "um período qualquer de vinte-e-quatro horas", ao passo que o do segundo é "um período específico de vinte-e-quatro horas especial na nossa vida". Por isso o segundo não pode ser substituído pelo pronome. Erros desse tipo costumam ocorrer em redações.
8. Impropriedade lexical
Outra categoria de erro de linguagem em relação à qual a terminologia acima se mostra bastante operacional é a impropriedade no uso do léxico. Esse tipo de incorreção, muito freqüente – como demonstra Bastos (1985) – em textos produzidos por universitários, pode decorrer, segundo temos observado (para citar apenas alguns fatores):
(a) da "mistura" inadequada de registros;(b) da substituição de constituintes de expressões idiomáticas;(c) da incompatibilidade entre as especificações semânticas de vocábulos contidos no mesmo sintagma ou na mesma sentença;(d) da incompatibilidade entre a orientação argumentativa do texto e a natureza pejorativa ou meliorativa dos itens lexicais escolhidos;etc.
Como não é nosso propósito tratar exaustivamente da inadequação vocabular, limitamo-nos a essas quatro subcategorias, lembrando que (a) equivale a erros relativos e (b), (c) e (d), a erros absolutos. Seguem-se alguns exemplos comentados:
(9) subcategoria (a) – "mistura" de registros: erro relativo – O emprego de itens lexicais típicos do registro informal numa situação comunicativa que requer o formal ou vice-versa é impropriedade lexical em termos relativos. Os sinônimos tapear, enganar e ludibriar, por exemplo, têm valores diferentes, sob esse aspecto, sendo o primeiro típico do registro informal; o segundo, neutro quanto ao registro e o terceiro, típico do formal, logo o uso de tapear num texto formal, ou o de ludibriar num informal seriam erros em termos relativos, ao passo que enganar pode ser empregado em princípio em qualquer texto.
(11) subcategoria (b) – substituição de constituintes de expressões idiomáticas: erro absoluto – Indivíduos que ainda não dominam a língua-padrão substituem às vezes, quando redigem, constituintes de locuções cristalizadas (expressões idiomáticas) por outros itens lexicais, sinônimos ou não, resultando daí uma forma inaceitável independentemente da situação em que ocorra.
Registramos algumas ocorrências desse fenômeno em redações de vestibulandos da UFRJ (1997). Por exemplo: "no meu achar" (no sentido de a meu ver), "costurando arestas" (em vez de aparando arestas), "levar à tona" (em lugar de trazer à tona) – como em "isso leva à tona problemas complicados" – e outros. Tais substituições são erros em termos absolutos, no sentido de que "desrespeitam" o próprio léxico da língua. Como a forma a meu ver se cristalizou, tornando-se um item lexical, o emprego de "no meu achar", "a meu enxergar" etc. seria uma infração da mesma natureza que protege-chuva (por guarda-chuva) ou quadro-preto por quadro-negro, caso alguém as viesse a cometer.
(11) subcategoria (c) – incompatibilidade de especificações semânticas: erro absoluto – Observando as frases Joana possui olhos verdes, Joana possui um sítio e Joana tem olhos verdes, nota-se que as duas últimas são plenamente aceitáveis, mas a primeira é um tanto "desajeitada".
Isso se explica pelo fato de que o verbo possuir seleciona complementos com a especificação semântica, digamos, [+Comercializável]. A especificação [-Comercializável] de olhos verdes é responsável pela inaceitabilidade da primeira frase. A subcategoria (c), portanto, pode classificar-se como erro absoluto, já que também ela independe da situação comunicativa.
Uma impropriedade como possuir olhos pode até passar despercebida, mas continua sendo verdade que essa seqüência é menos aceitável que ter olhos. Se, comparando as formas, observamos que a segunda é mais aceitável que a primeira, concluímos que esta não é plenamente aceitável. O fato de uma pequena desafinação numa sinfonia passar despercebida aos ouvidos de uma parte da platéia não significa que a execução tenha sido perfeita.
Não se deve confundir – repetimos – erro absoluto com erro grave. Certas incompatibilidades sêmicas podem ser sutis e pouco perceptíveis, mas não dependemos do contexto para as interpretarmos como incorreções, portanto, graves ou não, são erros absolutos. Observando-se (12) – abaixo – em que ocorre com grau mais alto de perceptibilidade o mesmo fenômeno que em (11) – conflito de especificações semânticas – se compreederá melhor esse fenômeno. O exemplo é artificial, mas, por isso mesmo, é ilustrativo:
(12) ainda subcategoria (c) – incompatibilidade de especificações semânticas: erro absoluto – Pedro bebeu uma pedra: beber "exige" complementos com a especificação, digamos, [+Líquido]. Como o sintagma uma pedra é especificado negativamente quanto a esse traço, a combinação fica insólita. Há semanticistas que tratam os estados da matéria – sólido, líquido e gasoso – como três especificações de um traço semântico gradual, mas para os objetivos de nossa análise esse pormenor é irrelevante, de modo que faremos abstração dele.
Embora não pretendamos aprofundar a questão do emprego metafórico das palavras, podemos adiantar que a existência de tal emprego não invalida a inclusão do conflito de especificações semânticas entre os casos de erro absoluto. Para dar conta da metáfora – e no ensino da redação há necessidade de uma abordagem que dê conta dela – faríamos uma ressalva: o conflito intencional de especificações, com um propósito comunicativo qualquer, não é erro; é metáfora. O estabelecimento de critérios para distinguir a discordância sêmica errônea da intencional e discursivamente válida, no entanto, seria uma verdadeira teoria da metáfora, que não pretendemos elaborar neste artigo. Por ora essa distinção ficaria por conta da intuição e do bom-senso.
(13) subcategoria (d) – incompatibilidade entre orientação argumentativa e escolha lexical: erro absoluto – Imaginemos que um texto cujo tema sejam os exílios políticos do período da ditadura militar brasileira, apesar de argumentar contra a ditadura e a favor dos exilados, se referisse a estes como "subversivos". Estaríamos diante de um erro absoluto de coerência textual: a orientação argumentativa do texto estaria indo numa direção e a escolha lexical (pejorativos e meliorativos), em outra, o que infringiria uma especie de "regra textual". Também neste caso, evidentemente, existe a possibilidade da infração permitida – em nome da ironia, do mascaramento de intenções etc. Essa infração está para (d), assim como a metáfora está para (c).
Os fenômeno (a) e (d) têm de ser detectados no nível discursivo, isto é, envolvem aspectos macroestruturais e situacionais, ao passo que (b) e (c) são de natureza microestrutural, podendo considerar-se frásticos. Sobre impropriedade lexical ver, além de Bastos (1985), Lima (1995).
9. Conclusão
Seria nula a utilidade do aspecto normativo do ensino da língua, num sentido amplo, se não existisse erro de linguagem, mas, como acabamos de ver, o erro existe, logo o que se deve combater não é necessariamente a faceta normativa do ensino, e sim o normativismo tradicional, fundado num conceito equivocado de correção lingüística. Na verdade, devemos corrigir de maneira absoluta os erros absolutos e de forma relativa os relativos, tratando aqueles como erros propriamente ditos e estes, como casos de inadequação.
A principal falha do normativismo tradicional consistia em procurar impor formas lingüísticas típicas do registro formal, em detrimento de suas equivalentes informais, tidas como errôneas. Tratava-se como incorreto, e não como informal, por exemplo, o emprego de ele como objeto, do pronome oblíquo no início da frase, de ter como verbo existencial, da chamada "mistura de tratamentos", de em com verbos de movimento, do imperativo com a flexão que no padrão escolar seria da segunda pessoa, mas associado ao tratamento você etc.
Certa vez um psicólogo disse, em entrevista a um órgão de imprensa, que o tabu do sexo deu lugar, em nossos dias, ao "tabu da ternura". Parafraseando esse psicólogo, poderíamos dizer que os tabus do ensino tradicional de Português deram lugar a novos preconceitos e barreiras mentais, que muitos professores e pesquisadores não percebem que têm. O mito de uma língua fixa e sem registros deu lugar ao tabu da interferência, gerando uma mentalidade segundo a qual quem fala em interferir no comportamento lingüístico do aluno é visto como adepto daquele mito antigo. Existe, no entanto, uma interferência construtiva.
Estas são ainda as linhas gerais da nossa proposta. Um maior detalhamento fica para outro trabalho.
BASTOS, Liliana Cabral (1985). Desvios lexicais em textos de alunos de terceiro grau da PUC-RJ. Relatório apresentado ao Conselho de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - CNPq, janeiro, 1985.
BOISSINOT, Alain (1994). Les textes argumentatifs. Toulouse, Bertrand- Lacoste.
BRONCKART, Jean-Paul (1999). Atividade de linguagem, textos e discursos: por um interacionismo sócio-discursivo. São Paulo, EDUC.
EDITORA ABRIL (1990). Manual de estilo. 7. ed. Rio de Janeiro, Nova Fronteira.
LIMA, Mônica Paula de (1995). Propriedade lexical na relação verbo- argumentos: uma contribuição ao ensino de produção de textos. Rio de Janeiro, UFRJ, Faculdade de Letras, Dissertação de Mestrado.
UCHOA, Carlos Eduardo Falcão, (1996). A comunicação escrita: revendo a sua avaliação pela escola. Cadernos de Letras da UFF. Niterói, Instituto de Letras da UFF, 12: 24-32, jul-dez.1996.